Aragarças, Jacareacanga, 1964, 8 de janeiro e anistia
O que esses episódios revelam sobre a relação entre democracia, Forças Armadas e a tentação do golpismo no Brasil?
Reprodução: Senado Federal

Contrários a Juscelino Kubitschek (E) e João Goulart (D), rebeldes queriam derrubar o governo JK para instaurar ditadura militar.
Aragarças e Jacareacanga são 2 municípios distintos — o primeiro em Goiás, às margens do rio Araguaia; o segundo, no Pará, banhado pelo rio Tapajós.
O que os une é a história: ambos deram nome a levantes militares que desafiaram a ordem democrática e pavimentaram o caminho para o golpe de 1964.
A Revolta de Aragarças (1959)¹ foi planejada pelo major-aviador Haroldo Veloso, líder da anterior Revolta de Jacareacanga (1956)². Ambas tentaram derrubar o presidente Juscelino Kubitschek (1956-1961), cuja política desenvolvimentista e herança getulista incomodavam setores das Forças Armadas.
Juscelino morreu em “acidente” de carro em 1976, em Resende (RJ)³ — episódio que até hoje suscita dúvidas.
Essas revoltas mostram como a leniência com o golpismo alimentou novas rupturas. A anistia aos revoltosos de Jacareacanga encorajou o movimento de Aragarças e, mais tarde, o golpe de 1964 — processo iniciado ainda em 1954, interrompido pelo suicídio de Getúlio Vargas e reaceso anos depois.
Anistia e instabilidade política
Embora a revolta de 1956 tenha sido rapidamente contida, JK anistiou os insurgentes, gesto que gerou insatisfação e abriu precedente perigoso.
Em 1959, ao contrário, o presidente não perdoou os golpistas de Aragarças, mas já governava sob forte tensão. A instabilidade se agravou até as eleições de 1960, vencidas por Jânio Quadros e João Goulart.
Jânio renunciou em agosto de 1961, acreditando que voltaria “nos braços do povo”. O cálculo fracassou, e o Brasil mergulhou em crise.
Legalidade e o golpe de 1964
A posse de João Goulart (Jango) foi ameaçada por setores militares e empresariais. A resposta veio com a Campanha da Legalidade⁴, liderada por Leonel Brizola, que garantiu a posse constitucional de Jango sob o regime parlamentarista aprovado pelo Congresso.
Entre 1961 e 1964, o País viveu intensa polarização. Jango tentou implementar as Reformas de Base, que buscavam reduzir desigualdades e modernizar o Estado, mas enfrentou oposição feroz de grupos conservadores, empresariais e religiosos.
Organizações como o Ipes⁵ e a CIA⁶ financiaram e articularam a conspiração que resultou no golpe civil-militar de 1964.
8 de janeiro de 2023: ecos do passado
Mais de meio século depois, o Brasil assistiu a novo ataque à democracia. Em 8 de janeiro de 2023, milhares de apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) invadiram e depredaram as sedes dos Três Poderes em Brasília — o ato final de trama golpista iniciada ainda em 2022, segundo a PF (Polícia Federal) e a PGR (Procuradoria-Geral da República).
O objetivo era contestar o resultado das eleições e forçar intervenção militar.
A reação da sociedade e das instituições foi imediata. Houve prisões, condenações e ampla defesa da democracia no Brasil e no exterior.
Mesmo assim, setores da direita e da oposição passaram a defender anistia aos envolvidos, alegando tratar-se de “manifestantes comuns”.
O governo, partidos de centro e esquerda e juristas rejeitam a proposta, por representá-la como ato de impunidade que fragilizaria o Estado de Direito.
O debate remete à Lei da Anistia de 1979, mas em contexto oposto: se antes buscava reconciliar um país saindo da ditadura, agora se tenta perdoar quem atentou contra a democracia consolidada.
(*) Jornalista, analista político e assessor parlamentar do Diap
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Notas
1. Revolta de Aragarças (1959) - Levante militar iniciado em Goiás, liderado por oficiais da Aeronáutica, que buscava derrubar JK.
2. Revolta de Jacareacanga (1956) - Tentativa de golpe contra Juscelino Kubitschek, organizada por militares da Aeronáutica no Pará.
3. Morte de Juscelino Kubitschek (1976) - Versão oficial aponta acidente rodoviário como causa. Há, porém, suspeitas de atentado político. A Comissão Nacional da Verdade (2014) considerou a hipótese inconclusiva.
4. Campanha da Legalidade (1961) - Mobilização liderada por Leonel Brizola para garantir a posse constitucional de Jango após a renúncia de Jânio.
5. Ipes (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais) - Organização empresarial e conservadora criada em 1961, que atuou no financiamento e articulação do golpe de 1964.
6. CIA (Central Intelligence Agency) - Agência de inteligência dos EUA envolvida em ações de apoio logístico e político ao golpe militar de 1964.