A farsa das “vítimas do comunismo”
Ao sancionar lei delirante, governador do DF embarca no revisionismo bolsonarista e transforma ideologia em política de Estado.
Foto: Carlos Gandra/ Agência CLDF
Projeto de lei de autoria do deputado Thiago Manzoni (PL) foi aprovado pelos distritais da CLDF no dia 30 de setembro.
O governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB), sancionou lei que cria o “Dia das Vítimas do Comunismo”. A decisão seria apenas risível, não fosse trágica.
O ato é mais uma tentativa de importar para o Brasil o discurso paranoico da extrema-direita, que vê fantasmas vermelhos onde há apenas cidadania, diversidade e pensamento crítico. Trata-se, pois, de delírio travestido de lei.
Trata-se de iniciativa sem base histórica, sem sentido jurídico e sem propósito público.
O “comunismo”, como força política organizada, jamais governou o Brasil e sequer existe ou existiu no mundo — tampouco perseguiu e/ou matou quem quer que fosse em nome de algum projeto de poder.
Logo, a lei não apenas ignora a realidade: inventa narrativa ou discurso para sustentar guerra ideológica imaginária e cultural.
Trata-se da ignorância consentida e orgulhosa.
Exportação da paranoia: modelo americano
A inspiração não é nova. Em 2017, o então presidente Donald Trump instituiu nos Estados Unidos o National Day for the Victims of Communism, data simbólica criada durante a Guerra Fria para reforçar o medo do “inimigo vermelho”.
Desde então, a extrema-direita global recicla essa narrativa, transformando o anticomunismo em plataforma de desinformação e controle cultural.
A iniciativa do governador do DF segue o mesmo roteiro: gesto performático, sem efeito prático, mas com alto valor político entre grupos bolsonaristas que vivem da invenção de ameaças e da negação do presente e da realidade.
Abraço ao bolsonarismo
Ao sancionar a medida, o governador abraça abertamente o bolsonarismo cultural, aquele que tenta reescrever a história e substituir o debate democrático por slogans de ódio.
Não é coincidência: essa retórica serve como distração conveniente diante da ausência de políticas efetivas de segurança, cultura e inclusão social no DF.
A adesão ao extremismo simbólico — com lei esdrúxula e vazia — mostra mais do que oportunismo político. É sintoma de uma elite local que teme o pensamento e desconfia da liberdade.
Reação digna
Diante dessa cena constrangedora, o secretário de Cultura, Bartolomeu Rodrigues, pediu demissão, num gesto raro de coerência. É simbólico que justamente o responsável pela área cultural — espaço de diálogo, reflexão e pluralidade — não aceite compactuar com o negacionismo travestido de lei.
Sua saída reforça a denúncia de que a política pública no DF caminha para a instrumentalização ideológica, algo que ameaça a autonomia cultural e o ambiente democrático.
Qual “comunismo”?
Cabe a pergunta inevitável: que comunismo é esse do qual o governador quer “proteger” a população?
O que há no Brasil é desigualdade, exclusão e desinformação — problemas reais que não se resolvem com fantasmas ideológicos.
Enquanto isso, a extrema-direita cria inimigos imaginários para evitar enfrentar os desafios concretos da sociedade: fome, desemprego, moradia e educação. Aqui e alhures.
Essa retórica do medo serve a um propósito claro: substituir a razão pelo ressentimento e a política pelo populismo reacionário.
Entre o autoritarismo e o ridículo
Medidas como essa banalizam o sofrimento histórico real — o de vítimas de ditaduras e regimes totalitários, inclusive o brasileiro. Ao falsear a memória, o poder público comete duplo erro: despreza a verdade e desonra as vítimas autênticas da violência de Estado.
O Brasil, que ainda busca justiça pelos crimes da ditadura militar, não pode tolerar que governantes promovam leis que deseducam, distorcem e manipulam a história nacional.
Contra a loucura e a manipulação do poder
Em tempos de fake news e populismos morais, é urgente reafirmar o valor da memória e da razão pública. O combate a essas “loucuras legais” deve vir do debate informado, da cultura e da educação crítica — e não do silêncio.
O caminho contra o obscurantismo é simples, embora difícil: ensinar história, valorizar a cultura, defender a ciência e proteger a democracia.
Como lembrava Paulo Freire, “a educação não transforma o mundo. A educação muda as pessoas. Pessoas transformam o mundo.”
E, como advertia Darcy Ribeiro, “a crise da educação no Brasil não é uma crise: é um projeto.”
Combater o delírio das “vítimas do comunismo” é, portanto, ato de resistência e lucidez — contra a ignorância que se disfarça de patriotismo e o poder que se traveste de moral.
(*) Jornalista, analista político e assessor parlamentar do Diap

